sexta-feira, 23 de setembro de 2016

A dor da gente não sai no jornal

A dor da gente não sai no jornal

Parecia mais uma noite normal para Joana, nordestina que morava em um humilde barraco da favela de Paraisópolis na capital Paulista e trabalhava de faxineira em um prédio de negócios próximo à Avenida Paulista. Ela tomava o seu café requentado com um pouco de leite e assistia a um filme brasileiro que passava na sua televisão de LED, seu único luxo do qual ainda pagava as parcelas. O filme era baseado no romance de uma escritora brasileira, mas isso pouco importava para ela já que mal sabia ler. Ela havia gostado mesmo era da personagem principal, Macabéa, que tinha uma história muito parecida com a sua.
Foi nesse momento de distração que seu mundo começou a ruir, Joana recebeu uma mensagem de celular do seu namorado, João, dizendo que ele havia se apaixonado por outra mulher e queria terminar o relacionamento. Aquela mensagem fez o único castelo de areia que ainda restava para Joana desmoronar, afinal o namorado era a única pessoa que parecia se importar com ela no mundo. No trabalho ninguém notava sua presença, não recebia um bom dia sequer, sua família havia voltado para o Nordeste e a única amiga que acreditava ter era na verdade uma voz eletrônica de um desses disk amizades para o qual ela ligava nos momentos de solidão.
Joana estava inconformada com a mensagem, ele não havia se dado o trabalho de falar aquilo pessoalmente e não deu sequer uma justificativa. Sentindo-se ainda mais triste e sozinha, ela voltou sua atenção para o filme e tentou esquecer tudo aquilo. Foi do enredo do filme que tirou uma ideia para chamar a atenção de alguém e se sentir importante. A Macabéa, com a qual tinha tantas semelhanças, tinha tido o momento mais importante da sua vida na sua morte, foi atropelada por uma Mercedez e virou pelo menos por alguns segundos o centro da atenção de todos na rua. A faxineira decidiu então que o melhor a se fazer era tirar a própria vida, ela acreditava que assim iria ser manchete dos jornais, teria seus 15 minutos de fama e morreria tendo a atenção de alguém.
Ela pegou todos os comprimidos que tinha no armário e tomou todos de uma só vez. Aos poucos começou a ter uma forte intoxicação, sentiu um enjoo imenso e entrou em desespero. O desespero aumentou ainda quando pegou o celular, viu uma mensagem do namorado perguntando se estava tudo bem e desejando boa noite. Joana não havia reparado, mas a mensagem que havia recebido antes era de um outro número, na certa uma triste coincidência, ela havia errado de João. Com o corpo já tomado pela intoxicação, ela não teve forças para responder a mensagem pedindo socorro e a única coisa que conseguiu fazer foi abrir a porta do barracão desmaiando logo na entrada.
A sua sorte foi que o caminhão de lixo passava naquele dia, um dos lixeiros a viu deitada quase sem vida e chamou por socorro. A ambulância demorou a chegar, mas ainda conseguiu resgatar Joana com alguns sinais de vida até o hospital mais próximo. Chegando lá passou por uma lavagem intestinal, recebeu soro na veia para desintoxicação e ficou acamada até acordar. Durante o tempo em que passou desacordada sonhou com seu trabalho, mas algo estava diferente, os chãos do escritório estavam imundos, os papéis vazavam pela lixeira sem ser recolhidos e todos gritavam freneticamente exigindo café. Um verdadeiro caos havia tomado conta do escritório e não havia nada que ela poderia fazer.
Joana acordou meio tonta, sem entender onde estava e ainda com uma forte dor de barriga. Só foi se lembrar da noite anterior quando o médico entrou na sala e percebeu que estava em um hospital.
- Bom dia, Joana - disse o doutor com um tom sério - você ainda deve estar meio confusa por conta da grande quantidade de remédios que ingeriu, mas logo vai estar melhor e vai poder voltar pra casa.
- Peço desculpa pelo incômodo doutor - disse a faxineira sem esconder a vergonha na cara - mas preciso ir embora logo, tenho que ir trabalhar se não perco meu emprego.
- Fique tranquila, Joana, vou te dar um atestado de dois dias, você precisa de descanso.
Apesar de estar muito envergonhada com a situação, Joana ficou feliz pelos dias de descanso e pela maneira atenciosa com que foi atendida pelo médico. Ela sabia como era difícil ter um bom atendimento nos hospitais públicos. Depois de medicada, a faxineira retirou-se para o seu lar. Chegando em casa foi correndo pegar o celular, havia recebido várias ligações e mensagens do namorado. Não pensou duas vezes, ligou correndo e mesmo com vergonha, explicou tudo para o João. Ele foi compreensivo e a partir daquele dia passou a demonstrar mais o carinho que sentia por ela.
Joana teve a ideia de procurar nos jornais e ver se algum deles havia noticiado a sua tentativa de suicídio. Correu até a banca mais próxima e comprou os principais jornais que cobriam a região em que morava. Para o seu espanto e alegria nenhum deles havia publicado o ocorrido, apesar de não conseguir ler nenhuma notícia completa por conta de sua dificuldade de leitura, ela ficou impressionada com a linguagem dos jornais. A maioria deles expunha tragédias e acontecimentos tristes na vida das pessoas, mas nenhum deles falava sobre o sentimento dessas pessoas e não pareciam estar preocupados com a dor que os familiares iriam sentir ao ler a notícia de uma morte por exemplo. Foi então que ela percebeu que a dor da gente não sai no jornal.
Ciente que sua história não havia virado manchete, ela descansou durante o resto do dia e tirou o outro dia para fazer coisas que gostava. Se deu até ao luxo de ir ao cinema com o namorado. Ligou para o trabalho avisando que estava com uma infecção intestinal, pediu desculpas para o patrão pela ausência sem aviso prévio e disse que voltaria no outro dia. Ele compreendeu, pediu para que ela levasse o atestado no dia seguinte e desejou melhoras para Joana.
Acordou cheia de disposição no dia seguinte, chegou no seu trabalho e percebeu que teria muito trabalho a fazer, afinal ninguém tinha feito o seu trabalho durante a sua ausência e a sujeira estava acumulada pelos quatro cantos do escritório. Porém o que mais chamou sua atenção foi que o chefe do departamento pessoal, que era conhecido por ser o mais sem educação e estressado da empresa chegou para ela e perguntou assim que chegou.
- Bom dia, Joana. Fiquei sabendo que esteve ausente, o que houve?
- Bom dia, doutor - apesar de saber que nenhum funcionário ali era doutor, Joana chamava todos de doutor, havia aprendido com seus pais que chamar os outros de doutor era sinal de respeito - tive um pequeno problema de saúde, mas já estou melhor, obrigada.
- Que bom, Joana. Depois passe por gentileza na minha sala, tem muito lixo acumulado e senti falta daquele cafezinho que só você sabe fazer.
- É pra já, doutor.
Joana abriu um sorriso sincero como nunca havia sorrido na vida. Foi então que teve um breve pensamento, a tristeza existe para todos, mas não é colocando-a em uma manchete que vamos conseguir acabar com ela. O melhor a se fazer é trabalhar com alegria, focar nas coisas boas que podemos fazer as pessoas e procurar ver sempre o lado bom da vida. O pequeno incidente fez ela perceber o quanto o seu trabalho era importante na vida das pessoas, mesmo ninguém lhe dando a atenção merecida, ela sabia agora que a sua ausência era sentida. E não demorou muito para o seu serviço ser reconhecido, depois que passou a trabalhar com seriedade e bom humor, foi promovida a chefe do setor de limpeza do prédio em que trabalhava e com o dinheiro que ganhava a mais passou a planejar seu casamento com o João.

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