domingo, 18 de setembro de 2016

A lenda do menino macaco

A lenda do menino macaco

Era uma tarde ensolarada na aldeia Aracoara, localizada não muito longe da costa brasileira e os indiozinhos brincavam próximo a cachoeira, quando um deles, o Kayapó, percebeu um movimento estranho entre as árvores. Intrigado como todo criança fica quando vê algo diferente, ele chegou mais perto e se deparou com um macaco comendo algumas frutas. O menino ficou encantado, aquele macaco não se parecia com nenhum que ele já tinha visto na região, era forte e tinha a pelagem das mãos ruivas. O macaco despertou o interesse do pequeno índio, ele queria ter os pelos ruivos como os da mão do macaco, queria ser diferente do resto da tribo, não gostava de se parecer igual a todo mundo.
Kayapó se lembrou ter ouvido o pajé da tribo uma vez falar que ao comer a carne do animal, nos tornamos um pouco ele e ficamos com algumas das suas características. Então, mesmo sabendo que os índios pequenos não tinham permissão para caçar em sua tribo, ele pegou o arco e flecha escondido do seu pai e entrou na mata a procura do macaco de mãos ruivas.
Não demorou muito tempo para Kayapó reencontrar o macaco, ele estava próximo do local onde ele o viu anteriormente, só que agora descansava no tronco de uma árvore. O pequeno índio logo pensou que estava com sorte, como o macaco dormia seria uma presa fácil, ainda que ele não sabia direito mirar as flechas. Ele acertou o macaco de primeira, que caiu no chão se contorcendo e dando berros de dor.
Assustado, o pequeno índio esperou até o macaco parar de berrar e depois foi levar o macaco orgulhoso para os pais. Kayapó foi correndo orgulhoso mostrar o resultado da caçada para a tribo. Porém chegando lá teve uma surpresa não muito boa, seu pai o esperava na oca com a cara fechada. E não demorou muito para bronca do pai vir.
- Kayapó estou muito bravo com você, não pude ir caçar hoje com o resto da tribo, pois não encontrei meu arco e flecha - disse o pai em tom severo - sabia que era você tinha pego, me dê isso aqui agora.
- Me desculpe pai - disse o menino de cabeça baixa - eu queria caçar esse macaco, quero ter a pelagem ruiva como ele.
- Que grande besteira Kayapó, você não vai ter a pelagem ruiva por caçar o macaco - continuou o pai ainda em tom severo - além disso, você sabe muito bem que crianças como você não tem permissão para caçar, a caça é uma tarefa apenas dos mais velhos.
O garoto devolveu os instrumentos de caça para o pai junto com o macaco, inconformado por não ter recebido nem um parabéns pela caça. Ele não conseguia aceitar o fato das crianças não poderem caçar com o resto da tribo, queria ser diferente, queria ser como os adultos. Foi dormir triste e teve um sonho bizarro no qual se tornava um macaco.
No outro dia acordou meio estranho, com a visão alterada e uma vontade louca de subir em uma árvore. Saiu pulando da oca até a árvore mais próxima, deu um salto alcançando o primeiro galho e ali ficou pendurado. Ele ainda não havia percebido, mas estava se comportando como um macaco. Só foi cair em si quando estava prestes a comer uma fruta ainda com casca.
Seus pais notaram sua ausência, passaram a lhe procurar por toda parte sem encontrar, não demorou muito para o desespero bater e toda tribo sair em sua busca. Ele começou a ouvir ruídos estranhos, parecia familiar, mas ele não conseguia decifrar o que era. Levou um susto quando seu irmão mais velho se aproximou, viu ele em cima da árvore e começou a falar com ele.
- Desça daí agora Kayapó, todos na tribo estão a sua procura - disse o irmão em tom de reprovação - desça daí logo e venha, você está parecendo mais um macaco.
O desespero bateu no pequeno índio, ele via seu irmão falar mas não conseguia compreender uma palavra sequer. Era como se eles não falassem mais a mesma língua, ele só desceu da árvore por compreender o gesto severo do irmão ordenando a sua descida. Porém tentou responder algo ao irmão e ao invés de palavras saíram da sua boa apenas ruídos sonoros muito parecidos com os de macaco. O irmão olhou para ele espantado e saiu correndo para chamar seus pais.
Kayapó foi correndo atrás do irmão, estava desesperado sem conseguir compreender nada do que acontecia. Será que o fato de ter matado o macaco teria o transformado em um macaco também? Seria uma vingança da mãe natureza para o seu ato de imprudência? Por mais que tentasse, os seus pensamentos não pareciam ter a mesma clareza que tinham antes.
Chegando na tribo o irmão foi correndo contar aos pais o acontecido e o menino agora macaco veio logo atrás. Os pais pareciam ainda mais espantados com a situação, não conseguiam compreender uma palavra sequer de Kayapó e vinham que o menino tinha os mesmos gestos de um macaco. A mãe se pôs a chorar e o pai foi correndo conversar com o pajé da tribo.
- Tacumã me ajude por favor, nosso menino Kayapó tornou-se um macaco - disse o pai em tom de desespero.
- Se acalme Ubã - disse o pajé sempre em tom sereno - diga-me o que aconteceu e eu poderei ajudar, não há nada sobre a terra que não possa ser resolvido com a ajuda da mãe natureza.
O pai contou então tudo que havia ocorrido no dia anterior, a caça escondida do filho, o desejo do pequeno de parecer diferente e a forma estranha como o filho estava se comportando. O pajé ficou intrigado com o caso, já havia escutado histórias de vingança da mãe natureza por conta de caças proibidas, mas nada parecido com aquilo. Porém como todo bom pajé manteve a calma e ordenou que o pai trouxesse o filho durante a noite para um ritual na floresta.
Assim como combinado, o pai apareceu com o filho na oca do pajé no final da tarde e os três partiram para o meio da floresta. Chegando lá encontraram uma clareira onde montaram uma pequena tenda com folhas de bananeira e o pajé preparou o espaço para o ritual. O pequeno Kayapó assistia a tudo sem entender quase nada, nunca havia participado de um ritual na floresta, isso também era privilégio para os adultos da tribo. O pajé retirou um líquido escuro de uma cumbuca e serviu para os três falando.
- Tomem esse líquido sagrado, é o vinho das almas, capaz de abrir todos os portais da mente e nos mostrar a verdade. Todo respeito é necessário quando estamos sobre o poder da ayahuasca.
Os três tomaram a bebida sagrada e o velho pajé começou a cantar um canto que aos poucos foi tomando conta da mente do pequeno Kayapó. O menino deixou-se levar pela música e sem perceber adormeceu. Acordou dentro de um sonho estranho, sabia que estava sonhando, mas tinha total controle sobre as suas ações. Um velho macaco apareceu do nada e foi logo dizendo.
- Me siga, eu tenho a cura para sua loucura - disse o macaco em tom desafiador e saiu em disparada pulando de galho em galho.
Ainda que sem entender, Kayapó seguiu sua intuição e correu atrás do velho macaco floresta a dentro. O velho macaco parecia que não ia parar, pulava de um lado para o outro e menino o seguia meio confuso. Os dois só pararam no topo da árvore mais alta, de onde dava para ver toda a floresta e tudo que estava lá embaixo. Foi então que o velho macaco disse.
- Preste bem atenção nas minhas palavras, tudo a sua volta está em equilíbrio, até mesmo o animal que come outro o faz por puro instinto natural e é isso que garante a manutenção de todas as espécies sobre essa Terra. Cada ser criado pela mãe natureza está no lugar que deveria estar e possui tudo que é necessário para evoluir. Quando você matou aquele macaco na ânsia de o comer apenas para querer ser diferente do resto da sua tribo, você provocou um desequilíbrio na mãe natureza - disse o xamã macaco em tom sério - e a natureza cobra tudo que retiram dela sem sua permissão.
- Mas e agora senhor macaco? Serei para sempre um menino macaco? Não quero, quero voltar a ser índio, como posso fazer para me redimir? - disse o menino em tom de arrependimento.
- Se eu dissesse o que deve fazer, estaria tomando o lugar da sua natureza - disse o velho macaco - você deve ouvir seu coração, ele está em sintonia com a mãe terra e saberá te levar de volta para o seu lugar.
A fala do velho macaco fez o menino acordar com um grande enjoo e ele começou a expelir um líquido verde fluorescente pela boca. O regurgito parecia não ter fim, era como se o menino estivesse expelindo todo o mal que havia feito a mãe natureza. Cansado e ao mesmo tempo aliviado, o menino deitou na tenda e só foi acordar no outro dia.
Kayapó acordou quando os primeiros raios de sol tocaram o seu rosto, não estava mais confuso como no dia anterior, era como se o ritual tivesse subido sua frequência até os céus e ele tinha agora a compreensão de tudo a sua volta. O menino deu um abraço amoroso em seu pai e outro no pajé como forma de gratidão. A sua loucura estava curada, ele não tinha mais a ânsia de ser diferente, compreendia o seu papel na tribo e nesse mundo. Passou a aceitar que tudo tinha sua hora para acontecer, cresceu em sintonia com a sua natureza e se tornou o maior pajé que a tribo Aracoara já tinha visto.

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